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Um Estudo de Caso sobre Processamento Auditivo Central e a Falsa Dislexia – Além das Letras

Introdução: O Enigma de Pedro
Pedro*, 9 anos, chega ao consultório encaminhado pela escola com a suspeita clássica: dislexia. Suas dificuldades de leitura e escrita eram evidentes. Ele trocava sílabas, tinha uma leitura extremamente lenta e laboriosa, e evitava atividades de compreensão de textos. A escola e a família, já exaustas, buscavam uma confirmação diagnóstica e um plano de intervenção. No entanto, como psicopedagogos e neuropsicopedagogos sabemos, o que parece óbvio à primeira vista raramente é a história completa.

A Investigação: Indo Além da Superfície
A primeira etapa foi escutar todos os envolvidos: pais, professores e, principalmente, Pedro. Em conversa, notava-se que ele era uma criança atenta e com um raciocínio lógico surpreendente para problemas concretos. Sua dificuldade parecia explodir em ambientes com mais informações sonoras.

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A avaliação psicopedagógica inicial confirmou discrepâncias significativas entre sua capacidade cognitiva (dentro da média superior) e seu desempenho em tarefas específicas de leitura e escrita. No entanto, alguns pontos saltaram aos olhos:

  1. Leitura silenciosa vs. Leitura em voz alta: Sua compreensão em leitura silenciosa era muito superior àquela feita quando ele precisava ler para alguém.
  2. Desempenho em ambientes controlados: Em sala de avaliação silenciosa, ele conseguia avançar mais do que em sala de aula.
  3. Dificuldades em seguir instruções orais complexas: “Pegue o lápis vermelho, a folha quadriculada e vá até a estante” o confundia completamente. Ele atendia apenas à primeira ou à última ordem.
  4. Queixas de “não entender” o que o professor falava quando havia ruído de fundo, mesmo que baixo.

Estes sinais foram o gatilho para um encaminhamento crucial: uma avaliação audiológica completa, com Teste de Processamento Auditivo Central (PAC).

O Diagnóstico Surpresa: PAC, não Dislexia
O resultado do teste de PAC foi revelador. Pedro apresentava um distúrbio significativo no processamento auditivo, especificamente nas habilidades de:

  • Fechamento Auditivo: Dificuldade em completar informações auditivas quando partes do sinal sonoro estão ausentes ou distorcidas (ex: entender a fala em um ambiente ruidoso).
  • Memória Auditiva Sequencial: Incapacidade de reter e recordar a ordem de sons e palavras.
  • Figura-Fundo Auditiva: Dificuldade em focar em um som relevante (a voz do professor) na presença de um ruído competitivo (barulho da rua, colegas sussurrando).

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Pedro ouvia perfeitamente bem (audiometria tonal normal), mas seu cérebro não processava de forma eficiente o que era ouvido. Suas “trocas” na leitura e escrita eram, na verdade, reflexos de como ele interpretava os sons da fala, não de um déficit na rota fonológica pura, como é comum na dislexia.

A Intervenção Interdisciplinar: Uma Abordagem em Duas Frentes
O plano de intervenção foi redesenhado, fruto do trabalho conjunto do neuropsicopedagogo, do fonoaudiólogo e da escola.

1. Frente Fonoaudiológica (Tratamento do PAC):

  • Treinamento Auditivo: Uso de softwares e atividades específicas para estimular as habilidades deficitárias (memória sequencial, figura-fundo).
  • Estratégias de Compensação: Ensino de técnicas de “escuta ativa”: pedir para repetir, observar os lábios do falante, posicionar-se estrategicamente na sala.
  • Indicação do Sistema de FM: Em alguns momentos, foi sugerido o uso de um sistema de frequência modulada que amplifica a voz do professor diretamente para o aluno, minimizando o ruído de fundo.

2. Frente Psicopedagógica/Neuropsicopedagógica (Reabilitação da Leitura e Adequações):

  • Consciência Fonológica MULTISSENSORIAL: Trabalho intensivo com letras táteis, associação visuo-espacial, usando o canal visual e cinestésico como âncora para contornar a via auditiva deficitária.
  • Leitura Partilhada e Modelagem: O profissional lia primeiro, modelando entonação e velocidade, para depois Pedro ler. Isso reduzia a sobrecarga.
  • Adaptações Ambientais na Escola: Sentar-se na primeira fileira, longe de janelas ou fontes de ruído. O professor passou a dar instruções breves, uma de cada vez, e a verificar a compreensão.
  • Valorização de Outras Vias de Aprendizagem: Uso de mapas mentais, vídeos, imagens e experiências práticas para construir conhecimento, mostrando a Pedro que sua inteligência não estava comprometida.

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Evolução e Conclusões: Aprendizados para a Prática
Após 10 meses de intervenção, a evolução de Pedro foi notável. Sua autoestima, que estava abalada, recuperou-se. Ele compreendeu que não era “burro” ou “desatento”, mas que seu cérebro processava o som de forma diferente. Sua leitura ficou mais fluente e a escrita, mais precisa.

Lições para Psicopedagogos e Neuropsicopedagogos:

  1. A Dislexia é um Diagnóstico de Exclusão: É fundamental descartar outros fatores primários, como deficiências sensoriais (visão e audição), PAC, ou mesmo questões emocionais significativas, antes de fechar o diagnóstico.
  2. A Anamnese é Nossa Principal Ferramenta: Detalhes sobre o “como” e “quando” as dificuldades aparecem são cruciais. O contexto é tudo.
  3. O Olhar Neuropsicopedagógico Ampliado: Compreender as bases neurobiológicas do aprendizado nos permite suspeitar de transtornos do processamento sensorial. Aprendizagem não acontece apenas no cérebro “puro”, mas através dos sistemas sensoriais que alimentam o cérebro com informações.
  4. Interdisciplinaridade é Fundamental: Casos complexos exigem o olhar de múltiplos profissionais. O trabalho em rede com fonoaudiólogos, psicólogos e neurologistas é indispensável.
  5. Empoderar o Sujeito: Ensinar a criança e a família sobre o seu próprio funcionamento é terapêutico. Transforma um “defeito” em uma característica que pode ser gerenciada e compensada.

O caso de Pedro nos lembra que nosso papel vai muito além de aplicar técnicas de alfabetização. Somos detetives da mente e do processo de aprender, cuja missão é desvendar a raiz singular de cada desafio para, então, traçar o caminho mais eficaz e acolhedor para superá-lo.

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Nome fictício para preservar a identidade do paciente.

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